sábado, 26 de fevereiro de 2011

QUARTA COM CARA DE DOMINGO


Já era noite quando chegamos à pequena e charmosa Cachoeira, cidade do Recôncavo Baiano banhada pelo rio Paraguaçu. Paramos para um café num lugarzinho super gostoso, enquanto apreciávamos as antiquarias do ambiente.

Ao percorrer suas ruas boas lembranças me vieram quando da primeira vez em que lá estive, era fevereiro de 2009, a cidade comemorava o Dia de Iemanjá...
E eu acompanhando Álvaro, meu fotógrafo preferido!

 

Era o início de tudo! 


Do outro lado do rio, a graciosa São Félix. A cidade pode ser vista sob o rio como reflexo de um grande espelho!

Estávamos indo para Maragogipe, cidade conhecida pelo carnaval de máscaras. Mas também, onde acontece uma grande festa em 02 de fevereiro em homenagem a Iemanjá.

No caminho, as estrelas chamaram-me a atenção, pareciam brilhar mais do que nunca. Era o meu céu de bola... o céu de bola da minha infância. Meus olhos também brilhavam encantados com o que viam, enquanto meus ouvidos pareciam inebriados com o som do silêncio, era música pra alma.

Seguíamos estrada afora em direção a praia de Ponta de Souza onde passaríamos a noite e também o dia seguinte.

Estava excitada e curiosa. Curtindo tudo. Acolhendo aquele lugar e me identificando com cada pedacinho dele, deixando minha criança surgir por meio das lembranças e do contato com a natureza que se manifestava de forma magnífica. A vida neste lugar segue um curso diferente, o curso das marés... a cidade é cercada pelo rio, que nutre tanto o corpo como a alma.


Ali as batidas do relógio parecem mais preguiçosas, se bem que pra mim, foram aceleradas, porque o dia passou voando. Entre contos e causos, risos e histórias de vida, três gerações dialogavam...


Enquanto isso, a maré sobe... a maré desce... e não importa de que forma ela esteja, é sempre curtida, seja no banho, na locomoção ou até mesmo, no ganha o pão de cada dia. Marisqueiros aproveitam a noite para pescar, um pontinho aqui e outro acolá...são eles!

O dia foi delicioso, encontros e reencontros. Um bate-papo de fazer qualquer um perder a hora e se deixar levar pela grandiosidade do que pode ser considerado como o mais simples. Me senti em uma novela de época ao me sentar à mesa para almoçar...àquela mesa enorme e bem servida!

Era 02 de fevereiro, dia de Iemanjá, por isso parecia domingo. A cidade estava em festa. A maioria das pessoas deste lugar cultua a Rainha do Mar.


Foto: Álvaro Villela


Foto: Ávaro Villela
 Iemanjá “é considerada uma das mães primordiais, presente em muitos mitos que falam da criação do mundo, como senhora das grandes águas, doces na África ou salgadas, como no Brasil e em Cuba”. Divindade antiga, mãe dos orixás e dos homens, foi trazida para o Brasil durante o período da escravidão, se tornando um importante símbolo religioso e o mais importante orixá feminino. Admirada por todos no Brasil, mesmo aqueles que não cultuam as religiões afro-brasileiras. Do ponto de vista psicológico, Iemanjá retoma os valores femininos e da fé, além de ser um importante exemplo de anima* positiva no homem e de um feminino forte e atualizado para as mulheres (NORONHA, s/d).

Mas tudo isso ainda é um grande mistério pra mim e por isso, talvez, vem aguçando cada vez mais a minha curiosidade. Criada em igreja evangélica não tinha proximidade com temas desta natureza, pois eram coisas do Demo. O descarte era feito automaticamente, tendo que seguir os princípios do que era ditado. Sendo assim, não poderia ao menos questionar.

Mas a vida me fez trilhar por caminhos diversos e encontrar pessoas e pessoas que aos poucos, vieram me trazendo suas crenças e valores para que eu pudesse conhecê-los. Foi na psicologia que encontrei o viés para rever meus conceitos e ressignificar minhas crenças. Dei-me permissão pra me abrir ao outro, pra fuçar o mundo e ampliar saberes, pois enquanto profissional da alma humana precisaria aprender a acolher tudo que a mim chegasse o que não quer dizer, que não terei o meu conceito sobre cada uma dessas coisas.


Hoje, sinto-me bem à vontade para me aproximar sem medo. Para me abrir ao mundo e conhecer sua gente, sua história, seus mistérios! Na verdade, mais à vontade para me adentrar e me apropriar daquilo que também é meu, mas que ainda não tinha consciência.

Escolhi então me aproximar, conhecer, conviver, ser, deixar de ser aquela pessoinha limitada no seu saber, no meu modo de ver.


Escolhi estar ali, à beira do rio Paraguaçu, no meio do verde, entre montanhas, embaixo do céu de bola da minha infância. Sentindo cheiro de mato, de bicho e de estrada de chão. Cheiro de histórias, de gente desbravadora, de garra e de coragem. Gente minha, gente sua, gente nossa!
Gente que tem dentro da gente...



No dia seguinte precisei acordar muito cedo para começar meu percurso de volta. Mas como a vida nada tira sem dar em troca, ganhei a bela imagem do amanhecer naquele lugar, uma linda manhã de quinta-feira, uma quinta com cara de domingo.

O sol parecia uma bola de fogo refletindo seus raios no rio que transbordava convidando a um mergulho, vontade de virar peixe e de lá não mais sair. Só um rio com aquela imensidão de água para me resfriar do calorão que o dia prometia. Fiquei na dívida. O dia anterior foi tão encantador que o banho de rio foi ficando pra depois e depois... e não aconteceu. Mereço um retorno a este lugar, mereço ainda um banho neste rio.

* figura feminina no inconsciente do homem

"Eu não aceito quaisquer fórmulas absolutas para viver. Nenhum código pré-concebido pode ver à frente tudo o que pode acontecer na vida de um homem. Conforme vivemos, crescemos e nossas crenças mudam. Elas devem mudar. Assim, penso que devemos viver com esta constante descoberta. Devemos ser abertos para esta aventura em um grau elevado de consciência de viver. Devemos apostar nossa inteira existência em nossa disposição para explorar e experimentar."

Martin Buber



REFERÊNCIA

- NORONHA, E. A fé em Iemanjá do ponto de vista psicológico. Jung e corpo. Ano VI, n. 6, p. 55-71, 2006.

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